No fim de 2021, o Brasil possuía 10.201 entidades mantenedoras, categorizadas como filantrópicas, e 27.384 estabelecimentos, entre matrizes e filiais, com forte atuação nas áreas da assistência social, da saúde e da educação. Todas elas devidamente registradas no banco de dados da Receita Federal. Juntas, essas instituições tiveram acesso a uma imunidade tributária que totalizou em R$ 30,5 bilhões aos cofres federais, segundo balanço da Receita referente a 2020. O valor corresponde a apenas 9,3% dos R$ 330,8 bilhões gastos pelo país com imunidades naquele ano.
Todos esses números estão presentes no relatório de pesquisa A contrapartida do setor filantrópico no Brasil de 2022, produzido pelo Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif). Mas a filantropia no país, mesmo com a consistência de seus resultados sociais, atravessa um histórico recente de conflitos com o governo federal. A Lei Complementar 187/2021, que nasceu do interesse público de regulamentar os critérios para as entidades filantrópicas obterem o CEBAS (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social), vem na verdade sufocando as entidades, praticamente inviabilizando o gozo pelas mesmas da Constitucional Imunidade Tributária, previstas pelo legislador constituinte nos artigos 150 e 195 da CF 88.
O alerta é do advogado Tomáz de Aquino Resende, especializado em assistência jurídica voltada para entidades sem fins lucrativos e presidente da Confederação Brasileira de Fundações (Cebraf). Ele explica que a regulamentação das regras para o acesso à imunidade não apenas dificulta o caminho a 80% das entidades filantrópicas do país como também passa por cima do conceito de imunidade tributária. “O conflito começa com uma falha de interpretação dentro da própria Receita Federal, que passou a tratar os artigos 150 e 195 da Constituição Federal não como imunidade, mas como isenção. Isso já criou um cenário de discussões, mas que foi acalorado pela Lei Complementar 187, para atender ao Art. 146 da Constituição”, protesta.
A diferença, esclarece, é que a imunidade tributária é uma garantia que escapa ao próprio poder do Estado, ao contrário da isenção. “Dar ou não isenção tributária para um setor da economia é uma prerrogativa estatal, algo que o governo pode conceder ou suprimir com base nos seus interesses, e a qualquer momento. Mas isso não alcança a imunidade, que é uma garantia pétrea dada às entidades filantrópicas, e que, portanto, não se baseia na autoridade governamental para mantê-la”, explica o jurista.
Esta é uma das razões pelas quais um grupo de entidades representativas de apoio ao 3º Setor ingressou com um recurso junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de esvaziar a LC 187. Um dos representantes é Ricardo Furtado, advogado da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), que considera a lei “um verdadeiro ataque” às imunidades. “Essa forma de atuar do Poder Legislativo e do Poder Executivo, pretendendo regular as imunidades tributárias, fere os princípios que tratam da competência e da legitimidade, pois as imunidades são dispostas para garantir direitos sociais e, portanto, foi vedado ao Estado tributar as instituições de assistência social”, critica.
Outro signatário da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.563, já ingressada junto ao STF, é a Associação Nacional de Procuradores e Promotores de Justiça de Fundações e Entidades de Interesse Social (Profis), cuja presidente é Janine Soares. “O objetivo da Profis é de contribuir para o fortalecimento do Terceiro Setor e potencializar as finalidades sociais a que as instituições se destinam, questionando inconstitucionalidades que ferem cláusulas pétreas. A missão constitucional do Ministério Público, de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais disponíveis, está totalmente conectado com o mérito da ação ajuizada junto ao STF, ao lado da Cofenen e da Cebraf”, posiciona-se.
Otimismo com a ADI
O impasse gerado pela Lei Complementar 187/21, ao fazer deliberações sobre a imunidade tributária e afetar diretamente as entidades filantrópicas do 3º Setor, é que suscitou na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7.563), provocada pela Cebraf, Confenen e Profis, além da participação do Presidente da Comissão de Direito do 3º Setor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional advogado André Carvalho. A expectativa das entidades que lideram o recurso no STF é de que a interpretação da LC seja derrubada.
“Nossa sustentação ampara-se na defesa de que as garantias coletivas e individuais são cláusulas pétreas, ou seja, são indissolúveis e não podem ser revogadas. As entidades beneficiam milhões de pessoas que não têm acesso nem à educação nem à saúde nem à assistência social, mas elas só funcionam graças à imunidade tributária. Isto leva ao entendimento claro de que o direito à imunidade deve ser tratado como cláusula pétrea. É o que vamos mostrar ao STF”, declara Tomáz de Aquino Resende.
Já Ricardo Furtado lembra que o próprio STF, em outros recursos, tratou claramente o Art. 195 da Constituição Federal como imunidade em vez de isenção tributária, o que reforça o entendimento contrário ao que defende a LC 187. Ele também pontua o caráter irrevogável presente nesse tipo de benefício. “As imunidades tributárias encerram verdadeiras cláusulas pétreas, pois elas se estabelecem para realizar ou exprimir direitos fundamentais, na forma do artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição Federal. E isso torna controversa a possibilidade de sua regulamentação através do poder constituinte derivado e/ou, ainda mais, pelo legislador ordinário original”, aponta.
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